Por Natalino Salgado Filho
Vida e liberdade, dois dos mais caros direitos que dizem respeito a todos os seres e, em especial, aos humanos. E é sobre esse binômio que quero refletir neste domingo da Ressurreição, quando milhões de cristãos ao redor do mundo todo se irmanam numa celebração do Cristo vencedor de todos os desafios da humanidade, inclusive o maior: a morte. O Senhor libertou-se de todas as angústias, tristezas e dissabores que o cercaram em sua passagem terrena, para legar a todos nós o seu exemplo de perdão, amor e compaixão. Como bem lembrou o padre Antônio Vieira em seu famoso sermão da Primeira Oitava da Páscoa, quando narra o encontro dos discípulos em Emaús com o Cristo ressurreto: “É a tristeza trocada em alegria, a desconfiança trocada em credulidade, a esperança trocada em fé”.
O binômio ao qual me referi no início do texto tem justificado inúmeras filosofias, religiões e organizações sociais – políticas e/ou religiosas -, pelo menos desde o século XVI, quando o humanismo moderno percorreu seus primeiros passos. Possivelmente, desde o alvorecer das civilizações, nada foi mais agredido, ignorado e até instrumentalizado em nome de libertadores de todos os quilates do que esses direitos.
A Páscoa, cujo significado básico é libertação, conduz a essa mesma díade. Um só ato, desde sua primeira comemoração na fuga do povo hebreu da escravidão no Egito, depois de um cativeiro de 430 anos, contém esses significados em conexão com o tempo. Lança olhares para um passado de onde se retira o referencial do que se foi – no caso daquele povo: escravo. Seres com dono, portanto sem liberdade. Sem vida, pois dela poderia dispor o senhor egípcio a seu bel-prazer. A Páscoa nos referenda no ato da libertação, na comemoração que antecede a fuga. Ela delineia um povo que antes povo não era: apenas um amontoado de pessoas sem identidade ou qualquer organização. A Páscoa cria um território de existência, nomeia uma identidade. Então, no presente, ela começa a desenhar o que aquele povo será.
Por fim, a Páscoa, ainda nos inspirando em sua primeira realização, projeta um olhar futuro. Todas as possibilidades estão lá. Uma terra, um povo – lembro das felizes palavras de Martin Luther King – guiado por um sonho. Há, contudo, um deserto para atravessar. Antes dele, um mar. Fome, águas amargosas e sede. Deserto é aprendizado. Uma vida se faz vivendo e nela estão incluídos os erros e acertos, os momentos bons e maus. Um povo se faz no caminho. Entre um abominável bezerro de ouro – que desviava o fiel para a adoração de um falso deus – e o monte Horebe, cheio de desafios com fogo, trovões e relâmpagos, a lei se estabeleceu como organizadora da boca de Deus.
A Páscoa se constrói não mais na história de um povo, mas dentro de cada um de seus membros. Torna-se algo íntimo. O processo é curioso, vai do geral para o particular. Da assembleia de fiéis para a relação pessoal. O profeta Jeremias vaticina em certo momenbto de seu ministério que a lei não seria mais escrita em tábuas de pedra, mas nas tábuas de carne do coração. Assim, pode-se dizer que a experiência se multiplica por tantos quantos sejam os que creem. Tem uma face, a de Cristo, nosso cordeiro pascal, mas muitíssimos rostos. Tem as cores das muitas raças, falas das muitas tribos que nos compõem seres humanos.
Sem desmerecer os grandes filósofos – os quais foram importantes para ajudar a entender a realidade e a nos explicar um pouco – ou ainda qualquer religião distinta da cristã, não há na história humana nenhuma simbologia tão plena de sentido quanto à Páscoa. Ela toca o material e o espiritual. Ela se manifesta no presente e no transcendente, ela é semente prenhe de alegria e esperança.
Apesar do sofrimento do Cordeiro de Deus, como afirmou São João, é de regozijo que a Páscoa fala. Não se ignora o sofrer da cruz, mas ela de modo nenhum representa um ponto final. Talvez, por isso, no amálgama sincrético entre o cristianismo e os primeiros povos pagãos europeus a se converterem, associou-se a festa de passagem do inverno para a primavera (antes praticada a uma promessa de fartura) à vida que se renova, portanto à alegria. Ovos e coelhos – símbolos daquela festividade – sugerem fertilidade; isso não é a Páscoa, porém mantém um ponto de contato com o renascer judaico-cristão.
Santo Agostinho, o bispo de Hipona, em seu famoso sermão pascal, assevera que Cristo “prometeu-nos sua vida, mas é ainda mais incrível o que fez: ofereceu-nos a sua morte. Como se dissesse: ‘À minha mesa vos convido. Nela ninguém morre, nela está a vida verdadeiramente feliz, nela o alimento não se corrompe, mas refaz e não se acaba’”.
Após o silêncio da sexta e a angustiante espera do sábado, eis que chega a alegria do domingo, com o Senhor que derrota a morte e nos ensina que, embora a dificuldade possa parecer infinita, há sempre esperança de um dia melhor. Como declarou Santo Atanásio de Alexandria: “À festa da Páscoa segue-se a festa de Pentecostes, para a qual nos preparamos, como de festa em festa, para celebrar o Espírito que já está conosco em Cristo Jesus”.
Natalino Salgado é Doutor em Nefrologia, reitor da UFMA e membro do IHGM, ACM, AMC e da AML