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Agassiz Almeida: Linduarte Noronha, o pioneiro do Cinema Novo

Lá pelos fins da década de 1950, quando juntos, Linduarte e eu, cursamos a Faculdade de Direito da Paraíba, num entardecer de um sábado, em João Pessoa, algo iria nortear ideologicamente a nossa visão do mundo: uma conferência do revolucionário educador Paulo Freire. A partir daquele encontro começamos a olhar e compreender a sociedade invisível, aquela que pulula nos subterrâneos dos estratos sociais e cujos gritos e dores são abafados.

Com Linduarte, eu convivi por longos anos, desde os bancos acadêmicos até as cátedras universitárias, quando fomos atingidos pelo Golpe Militar de 64.  Quantas vezes, e foram muitas, ele ia estudar na minha casa à rua das Trincheiras, em João Pessoa, onde eu morava com a família.   Já naquela época, ele era possuidor de uma forte convicção marxista.

Na avidez de conhecermos o mundo dos grandes pensadores, como Marcuse, Marx, Lênin, Gramsci, Lukàcs, Althusser, Paulo Freire, Adorno, Euclides da Cunha, nos fizemos ausentes de aulas na faculdade. Ecos das palavras indignadas de Voltaire, Victor Hugo, Castro Alves, Pablo Neruda e Garcia Lorca chegavam até nós.

Ao escrever esta matéria, contemplo numa distância de mais de meio século aquele personagem  com quem comunguei pensamentos e ideais que nos   embalaram na arte e na política.

Linduarte Noronha marcou um destino. Com  ingentes  esforços e desafiadora determinação, ele retratou  a multidão dos condenados da vida.

Que ruidosos momentos a nossa geração viveu!

Paremos por um instante diante  daquele vulto cuja vida nos legou uma história de insubmissão  aos poderosos e  soube construir uma arte criativa face aos oportunistas de todo o jaez. Documentou os desencontrados de uma  sociedade egoísta. Deixou-nos esta flama.   Tudo nele irradiava uma aura criadora, um não sei quê  de indefinido e místico no seu porte introspectivo.

No fundo das obras precursoras ou nas ações revolucionárias, lá onde elas plantam as suas raízes, encontramos sempre uma razão de rebeldia contra o status quo.

O que nos ligou, a mim e a Linduarte Noronha, foi um sentimento de inquietude, de paixão, a romper o que as forças dirigentes da sociedade queriam nos impor como cultura dominante.

Que época de apaixonada embriaguez! Queríamos empurrar o carrilhão da humanidade para novos tempos e desafiar uma arte encastelada numa estética  por meio da qual se visava apenas satisfazer o gozo de uma  literatice  balofa.

Onde se fez revolucionaria a obra deste cineasta do inconformismo? Rompeu com uma cultura atrelada aos balcões das bilheterias.

O Golpe Militar de 64 nos lançou numa opressiva incerteza, fazendo-nos cúmplices de comuns pensamentos.

Sob uma mesma visão ideológica, olhamos os excluídos do mundo. Ele, pelas lentes da  arte cênica, eu, pelo eco das palavras. Ele, trazendo para si, silenciosamente, a dor dos desamparados que retratava, eu,  desferindo em gritos a condenação aos espoliadores dos camponeses.  A Ditadura Militar nos  arrancou violentamente da universidade. O curta- metragem Aruanda, precursor do cinema novo, revolucionou a cinematografia no país. O  futuro de um Brasil brasileiro ,que abraçamos, tombou sob as botas do militarismo. Eu olhava com melancolia  a  raça negra da serra do Talhado,  projetada em Aruanda,  a terra da promissão, ele sabia ouvir  os gritos dos camponeses esmagados no eito da cana de açúcar.

Certa vez, mostrei a Linduarte um bilhete que Pedro Fazendeiro, morto e desaparecido pela Ditadura Militar, recebeu de um sicário do latifúndio:     Desligue-se das Ligas Camponesas ou você terá o mesmo destino de  João Pedro Teixeira. Ele me olhou e disse:  Que elite covarde esta do Brasil.

Tínhamos a impulsionar os nossos ideais  forças  vivas sob o pálio de uma  chama que  nos fazia  indignados  ante  as  injustiças. Assim, aconteça o que acontecer somos filhos daquele momento histórico da geração de 60.

Que personagem era aquele? Passos lentos, olhar introspectivo, voz mansa quase pedindo desculpas aos interlocutores, alma aberta  às grandes sensibilidades.

Quando lhe relatava, lá pelos fins da década de 1950, as minhas lutas contra o  implacável coronelismo enquistado na região de Cabaceiras e em outras desafiadoras contendas,sobretudo na  organização  das Ligas Camponesas  contra a opressão do latifúndio, ele me ouvia com  inebriez sacerdotal. Então, me perguntava sobre os quilombolas de Boa-Vista, Cabaceiras e Congo. Queria se informar das condições de vida destas comunidades negras.

Um sentimento comum de indignação nos unia.

Num certo dia do ano de 1957, Linduarte me falou emocionado de sua viagem à serra do Talhado, em Santa Luzia do Sabugi, onde conheceu o quilombo “Olho d’Água”, situado às bordas do planalto da Borborema, a cerca de 20 quilômetros da cidade,  e das oleiras, mulheres que trabalhavam artesanalmente  com peças de cerâmica . Tudo ali, para nós, se apresentava numa extraordinária visão, envolvendo  num espanto que nos fazia mergulhar no imponderável. Por horas e horas, Linduarte me relatava a saga da comunidade negra, que chegou  naquela serra tangida  pelas infames condições de vida nos engenhos de açúcar e nos latifúndios da zona da mata no Nordeste.

Após conhecermos a história daquela comunidade, isolada no meio da serra do Talhado, começamos a compreender a formação de dezenas e dezenas de quilombolas. Num dado momento, Linduarte meio trêmulo de emoção, pega-me  pelo braço e solta estas palavras: “Vou documentar  aquele cenário humano”.

Ali começavam a surgir os primeiros lampejos de Aruanda, a obra que abriu uma nova visão à cinematografia no Brasil.

A partir daquela hora, o criador de Aruanda  vestia a sua  criação de forte ideologia para os embates do mundo.     Parecia que toda a história da raça africana, desde os confins das terras escravizadas, penetrava em sua mente. Repetia obsessivamente esta idéia: Preciso retratar aquela comunidade, preciso…. preciso. Seus olhos embriagavam-se de luz, e um estado de êxtase o envolvia.

Não era o destino das individualidades que Linduarte contemplava. Não! Ele mergulhava na essência da própria condição humana. Buscava encontrar o ritmo da história dos agrupamentos humanos  a se debater  ante as injustiças   sociais.  Assim ele olhou o quilombo do Olho d’Água do Talhado.

Euclides da Cunha imortalizou a resistência de Canudos; Linduarte  Noronha retratou o grito surdo dos condenados do  Talhado.

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