Por Abdon Marinho
No site imirante, leio a notícia vazada com singular profissionalismo: “SÃO LUÍS – Um adolescente de 14 anos, identificado como Anderson Matos Silva, foi vítima de linchamento na noite desse domingo (20), no bairro Santa Efigênia, próximo à Cidade Operária.
Segundo a Secretaria de Segurança Pública (SSP), o adolescente, na companhia de outros jovens, tentou tomar de assalto a motocicleta de um mototaxista. Durante a tentativa de assalto, vários mototaxistas se juntaram para impedir a ação. Os demais assaltantes fugiram e apenas Anderson foi pego. O menor foi amarrado em um poste e agredido até a morte.O adolescente era morador do bairro Jardim Tropical. Ninguém foi preso pelo ato violento.”
Como lidar com uma notícia assim? Aos jornalistas cabem apenas noticiar o fato, mater-se, até por questão de preservação, equidistante do fato, é o seu papel. O nosso, como cidadãos que pensam e que opinam em busca de uma sociedade melhor nos cabe instigar a sociedade, indagar a todos como chegamos a esse ponto. Qual a doença que contaminou a sociedade a ponto de acharem normal esse tipo de coisa. A ponto de deixarem esse tipo de notícia virar apenas uma nota de rodapé, uma notícia de oito linhas.
Já falei em textos anteriores sobre a minha preocupação com a banalidade com a qual cidadãos comuns, trabalhadores, pais de famílias, tornam-se uma massa assassina e tomam para si o exercício da “justiça” na sua forma mais primitiva. O caso noticiado acima não é o único, já tivemos diversos só esse ano na Ilha do Amor, que ironia. Acho que não há amor que resista a tanta violência. Como é possível acharmos normal que uma tentativa de assalto redunde no brutal assassinato de uma criança? Porque os partícipes não o imobilizaram e chamaram as autoridades para que o menor infrator sofresse as penalidades estipuladas na lei? Como encarar como normal, o fato de diversos adultos, como disse, trabalhadores, pais de famílias, muitos tementes à Deus, amarrarem em um poste o filho de outrem e o espancarem até a morte? Tortura-lo até a morte? A nenhum dos ocorreu a ideia que estavam cometendo um assassinato? Que a tortura ia além do senso de proporcionalidade? Que vivemos em uma sociedade com leis e que todos nós estamos sob o seu império? Como as pessoas que cometeram esse ato chegaram em casa e foram dormir tranquilos ao lado de esposas e filhos logo após matarem, sem razão – se o assaltante estava imobilizado não tinham porque matá-lo –, o filho alheio?
Repito o que já disse em escritos anteriores, não é normal o que vem acontecendo na nossa cidade, na nossa região metropolitana, a sociedade não pode tomar para si as funções do Estado e prenderem, julgarem, condenarem e darem cumprimento a sentença, sobretudo a sentença de morte, oficialmente inexistente o Brasil.
A noticia fecha com a informação de que ninguém foi preso pelo ato violento. Vejam que o assassinato, na letra objetiva da notícia, tornar-se apenas um “ato violento”. Até parece que ninguém se dá conta do que aconteceu, de todas as tragédias contidas numa simples nota de oito linhas.
Vejam comigo. Tínhamos uma criança de 14 anos, com todas as características que estava sendo negligenciada pelos pais; essa mesma criança, unida com outras crianças estavam assaltando; em face do insucesso do assalto essa criança foi presa por diverso cidadãos, até onde se sabe, pessoas de bem, que a torturaram amarrada num posta, até que a criança de 14 anos morrer. Tudo isso em pleno domingo de Páscoa, com as pessoas crendo na ressurreição de Cristo. A criança ficou morta amarrada no poste enquanto os autores foram para suas casas abraçarem e beijarem suas esposas e filhos e depois dormirem como se nada tivesse acontecido.
A tragédia não para aí. Esse crime, em pese a sua gravidade, é um daqueles que nunca será investigado, que nunca ninguém será punido por ele. Acredito que sequer se chegará à identificação dos que participaram do linchamento, quanto mais ao responsável, a individualização das condutas dos participes. E ainda que fosse é quase certo que o autor ou autores seriam absolvidos pelo júri popular.
A tragédia ainda vai além. O que pode ser mais trágico que vermos em pleno domingo de Páscoa cidadãos de bem, que devem até terem ido à missa dominical, matarem no fim da tarde/noite uma criança de 14 anos? O que justificaria isso? A omissão do Estado? Uma sociedade profundamente doente? Uma psicopatia coletiva?
Apenas para efeito de ilustração, vamos traçar um breve paralelo entre o caso do menino Bernardo, 11 anos, assassinado de forma horrenda e esse linchamento ocorrido no domingo de Páscoa. Temos aí duas crianças, dentre tantas outras Brasil afora, que foram neglicenciadas por aqueles que tinham o dever de cuidar deles. Digo mais, o crime ocorrido aqui na Ilha de São Luís, ao meu sentir, é até grave, por simples, enquanto o menino Bernardo, de 11 anos, ocorrido no Rio Grande do Sul, foi morto por pessoas claramente psicopatas, um pai, uma madrasta e uma assistente social amiga da madrasta, três psicopatas, capazes de planejar e executar um crime tão horrendo enquanto que o crime ocorrido no domingo de Páscoa aqui na nossa Ilha foi praticado por inúmeros pais de família, trabalhadores, supostamente pessoas de bem. Estas pessoas foram capazes de pegar um jovem (aqui não interessa se o rapaz estava em condição de flagrante de crime, trata-se de uma vida, de uma criança), amarra-lo em um poste e o torturarem até a morte, em via pública, a vistas de todos, como se não tivesses fazendo nada demais. Não mataram por acidente, espancaram a criança até a morte quando poderiam evitar fazer. Quando qualquer um dos presentes poderia intervir, chamar a polícia ou simplesmente dizer chega. Quedaram-se inertes, em silêncio, foram para cima ajudar no crime.
Não é de hoje que o Brasil, a sociedade brasileira, os pais, vêm negligenciando as nossas crianças. Os pais acham muito bom fazer menino, mas ninguém que assumir a responsabilidade por sua educação, ensinar-lhes um mínimo de valores, de respeito. Por conta disso temos crianças, com idade cada vez mais tenra cometendo os mais diversos crimes e morrendo cada vez mais cedo.
Esse descontrole generalizado gera essa psicopatia coletiva capaz de levar pessoas de bem a torturarem até a morte uma criança de 14 anos.
Noutra oportunidade discutiremos a questão recorrente da redução da maioridade penal, que defendo. Antes vamos pensar um pouco no que estamos fazendo com as nossas crianças, jovens e adolescentes.
Abdon Marinho é advogado eleitoral.