O governo Lula (PT) manteve o uso da estatal Codevasf como um emendoduto para que deputados e senadores possam despejar em seus redutos políticos milhares de metros de asfaltamento, caminhões, máquinas pesadas, tratores e equipamentos neste ano de eleições municipais.
A manobra de envio de recursos de emendas parlamentares para a estatal passou a ser utilizada em larga escala no governo Jair Bolsonaro (PL) e, em 2024, poderá favorecer candidatos aliados de congressistas e desequilibrar as disputas locais.
Levantamento da Folha mostra que no primeiro ano da gestão Lula a Codevasf fez licitações para obras e produtos no valor de mais de R$ 5 bilhões, ficando num patamar próximo ao de 2021, último ano pré-eleitoral sob Bolsonaro.
Mais de um terço (R$ 1,9 bilhão) do valor das concorrências com resultados já publicados em 2023 foram para obras de pavimentação e recapeamento, serviços que não fazem parte da vocação histórica da Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba), que é a de promover projetos de irrigação e segurança hídrica no semiárido brasileiro.
As licitações configuram o primeiro passo do emendoduto, uma vez que viabilizam formalmente a aquisição dos serviços e produtos pela Codevasf. Em seguida, já sabedores do acervo que a estatal poderá oferecer, deputados e senadores escolhem a dedo as obras e produtos que serão financiados com suas emendas parlamentares e para onde os benefícios irão.
Para facilitar a destinação dos recursos, a Codevasf até criou um catálogo que se assemelha a um impresso comercial de empresas privadas e revendedores.
Nessa espécie de loja para políticos, a etapa seguinte para os congressistas é a de enviar ofícios à Codevasf indicando os valores das emendas que destinarão à estatal, quais serviços e produtos serão financiados e quais prefeituras ou entidades serão favorecidas.
A partir dessas indicações de deputados e senadores, a empresa pública coloca os recursos públicos e seu pessoal para executar as orientações dos políticos, que são baseadas em critérios de “toma lá dá cá” e não em estudos técnicos de necessidades locais ou programas de governo.
A Codevasf foi entregue por Bolsonaro a partidos do centrão em troca de apoio político, e no governo dele a empresa pública cresceu em contratos e expandiu seu foco e sua área de atuação —tudo isso sem planejamento e com controle precário de gastos. Ao mesmo tempo, a estatal se transformou num dos principais instrumentos para escoar emendas. O modelo foi repetido pela gestão Lula.
No período de transição entre governos, no fim de 2022, setores do PT e aliados do partido defenderam que a estatal voltasse a priorizar suas funções originais.
Na ocasião, o então coordenador dos grupos técnicos da transição de governo, Aloizio Mercadante (PT), chegou a dizer que “não pode pulverizar em asfalto quando não tem defesa civil. Não pode jogar recurso em pequenas obras, quando não tem Operação Carro-Pipa ou oferta de água, abastecimento de grandes cidades. Mais uma vez estamos vendo total colapso orçamentário, desestruturação de políticas públicas”.
Porém, na prática, o balanço das licitações feitas sob Lula indica que a empresa pública segue na trilha deixada por Bolsonaro. O atual governo inclusive manteve o presidente da estatal nomeado na gestão anterior por indicação do deputado federal Elmar Nascimento (União Brasil-BA), aliado do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL).
A Folha analisou informações publicadas em sites oficiais de cerca de 570 licitações lançadas em 2023 pela estatal. Os dados mostram que a soma dos valores das concorrências da Codevasf já com vencedores conhecidos atinge cerca de R$ 5,3 bilhões.
A quantia supera, em valores absolutos, os montantes das concorrências da Codevasf sob Bolsonaro —de 2021, que foi de cerca de R$ 5,1 bilhões, e de 2022, que foi de R$ 3,7 bilhões. Porém, a correção monetária da quantia pelo IPCA coloca 2021 à frente no ranking da estatal, com R$ 5,6 bilhões.
No atual governo e no anterior os números foram puxados pelas obras de pavimentação e recapeamento.
Sob Lula, os maiores valores das licitações foram para os estados da Bahia (R$ 366 milhões), Minas Gerais (R$ 208 milhões), Pernambuco (R$ 169 milhões), Ceará (R$ 157 milhões), Maranhão (R$ 144 milhões), Alagoas (R$ 125 milhões) e Amapá (R$ 120 milhões).
A maioria das concorrências desse tipo foram para a assinatura de contratos conhecidos como “guarda-chuva”, nos quais a empresa vencedora se compromete a fechar um preço por metro quadrado sem saber exatamente onde e em que condições a obra deverá ser realizada, o que abre brechas para distorções nas cotações e irregularidades na execução dos serviços.
Tecnicamente chamado de sistema ou ata de registro de preços, esse mecanismo em que as obras podem ser orçadas como se fossem um serviço de colocação de piso em uma casa é alvo de críticas e investigações de integrantes do TCU (Tribunal de Contas da União), da CGU (Controladoria-Geral da União) e da Polícia Federal.
Além de pavimentação e recapeamento, a lista das obras e produtos licitados em 2023 ainda traz compras de caminhões e veículos (R$ 850 milhões), retroescavadeiras e outras máquinas pesadas (R$ 650 milhões), tratores e implementos agrícolas (R$ 450 milhões) e reservatórios de água (R$ 160 milhões).
A estatal também fez concorrências para a construção de quadras esportivas (R$ 230 milhões), poços artesianos (R$ 210 milhões) e pontes (R$ 200 milhões).
Da Folha de São Paulo